quarta-feira, 26 de março de 2008

Magreza

Sonho que me afundo
Sonho que me afasto
Sonho que me mato

Promovido a líder de discrepâncias
Observo as cadeiras que não se equilibram
Não deixo que me observem
Uma rocha, uma ilha
Sou deserto
Uma tentação desumana ao serviço de todos
Metamorfose espontânea a desenvolver-se lentamente

Sinto que me afundo
Sinto que me afasto
Sinto que me mato

A hipnose badalada felicita os distúrbios
Fico murcho seco
Sou o espelho da minha própria anorexia
O estudo inegável da verdade
Um rato na neve deitado
Faca à espreita

Sonho que me afundo
Sonho que me afasto
Sonho que me mato

Publicidade enevoada
Fica o pensamento inacabado, inquieto de rastos
Como a fotografia dramatizada da minha anorexia apodrecida
E sonho...
Com ela no escuro
Com ela - esqueleto
Com ela, ela, ela
Só ela

terça-feira, 25 de março de 2008

Despreocupações...

O Vítor cumprimentou-me. Estava de fato de treino como habitualmente e numa pressa inexplicada lançou-me um aceno jovial ao longe. Acenei de volta e fiquei parado ao vê-lo correr de chinelos pelo cimento. Sei que a avenida estava repleta, carros atropelavam-se, magoavam-se e a presença de tantas pessoas não era mais do que outra forma de poluição. Em casa estava encurralado. O ambiente tornava-se mais denso e as sensações em desuso; havia um monstro pequenino. Um polvo. Inofensivo completamente mas o mestre da indisposição. Tive que sair do vapor e procurar outro método de induzir realidade no corpo entorpecido. Uma caixa. Ela está toda afectada. Agradece ao seu médico favorito mas isso não resolve nada. Continua com marcas entre o vermelho e o branco a escorrerem pela cara. Agora param, estatificam-se. Não sinto pena dela, é chata com o seu monólogo assistido. Falsa desfigurada, uma transfigurada. Está na caixa mágica habitual que se enquadra. Nem cheguei a ver o monstrinho e na prisão a actuação soa irrealista. O produto de argumentos mal aproveitados. Seria mais fácil se capturassem a voz dela.

...e a voz dela

Dela. Serviria para harmonizar qualquer falha em espaços ou programações.
A sua pontuação é suave, como se nunca falasse quando não é preciso. Assim, todas as palavras parecem pequeninas e quase propositadas. Calculadas. Como um fio de vento melodioso a deslizar por árvores altas, barulhentas. A língua prepara os sons delicadamente e solta-os de forma rápida e imediata. É a ajudante da beleza. Expressa-se numa forma desinteressada, são confissões, parágrafos de suspiros que rasgam bem no fundo com toda a sua alienação abismal.
É como raspar os dedos numa parede e adormecê-los num balde de algodão doce.
Indiferença sensual, uma voz como solução. Uma voz.
A sua voz.
A voz dela.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Danças

Cinzento a rebentar um sol castigado
Frutas e árvores quietas nem respiram
Ficam obedientes no íntimo impensável
Psicologia do falso inanimado
Desfigurado por dentro inconscientes vómitos
Luzes de carros prestes a arrancar, vermelho na relva aumentado
Minas, minas de cristal, não

...não simples não...

Sensibilidade ultra-refinada
Não há pormenores, morreram
Atirar o cérebro influente ensopado na tela sonhadora
Artificar palavras comprometidas no plano da audição
Criação!
Paro de escrever, escape

...

Expliquem-me quantos olhos se exibem no êxtase
E fico mesmo a saborear
Fico
Claro
A sério que sim
Juro
Só eu e o meu clip

sábado, 8 de março de 2008

Ampulheta Artificial

Razoavelmente normal, era o que costumavam dizer dele.
Que era razoavelmente normal quase a entrar nalgum tipo de padrão de aceitação.
Andava cabisbaixo várias vezes, murmurando de forma imperceptível e atrapalhada os jingles da monótona publicidade.
As suas calças faziam um ruído irritante quando se tocavam, o som de faíscas subvalorizadas.
Hoje era Inverno e estava um sol que ameaçava derreter todo o metal contido na paisagem.
Mas podia estar uma chuva tendenciosa que não interessava, de qualquer maneira.
Ele não se preocupava com as coisas que não podia mudar.
O que era uma grande vantagem. Contornava qualquer complicação e as suas manias pareciam-lhe sempre naturais, não se sentia mais fraco ou menor ao optar por outras vias.
Não questionava os seus gostos e atitudes. Adorava mexer-se nos desígnios que criara.
Gostava de muitas coisas, talvez demasiadas e era obsessivo nas suas intermináveis compras.
Na música só ouvia vinil o que constituía um passatempo trabalhoso. Mas era uma razão.
Mais uma. Para algo. Fascinava-se pelas capas enormes, pela simples crueza crepitar do lento rodar da agulha. Ele gostava de pensar que era como eles. Adorava ter essa razão.
Preparava-se para trabalhar, enfeitava-se cautelosamente. Fato completo de azul preto fulminante, cabelo mergulhado quieto em cima e uma mancha avermelhada no esquerdo superior da camisa. Não a questionava. Não precisava. Estava imaculado com uma ligeira imperfeição. Mas podia estar imperfeito com uma ligeira mácula que não interessava, de qualquer maneira. Ele não se preocupava com as coisas que não lhe apetecia mudar.
Chuva na estrada lá fora. E lá fora a estrada era rebelde. A velocidade do jogo frenético repleto de consumismo e nervosismo, olhares fixos e insensíveis começava a desgastar. Toda a cidade. Um espelho na noite, estava na altura da avaliação diária, o confronto consigo mesmo. Fitava-se continuamente até se esquecer que estava a observar a sua cara. O exercício do anonimato consciente. Dera-lhe esse nome há dois anos atrás e continuava válido. Mas hoje decidira algo diferente. Fingiu-se de escuridão. Abriu um buraco em si mesmo e afundou-se no chão.
Via o Futuro a repetir-se uma vez e outra. Devagar e outra, rápido e outra. Vez.
Acabou. Na esquerda da curva menos livre só fica mesmo o asfalto.
Mas não interessa, de qualquer maneira. Ninguém se preocupa com o que não sabe mudar.

terça-feira, 4 de março de 2008

Polska

Ela era uma rapariga complexa. Desejava mortíferos bons dias aos seus melhores amigos, desprezava-os.
Juntava-se a eles apenas pelo prazer de algum tipo de interacção e afastava-se num clarão sempre que precisava. Sabia que a sua língua era capaz de imitar várias linguagens mas reserva-se apenas à sua. Vestia usualmente os mesmos trapos: umas calças largas cor de melancia e um casaco obsoleto verde escuro prendido em enormes botões como olhos quietos de plástico.
Tinha assim, pequenas obsessões. umas mais fortes do que as outras.
Mordiscava os dedos com impressionante força até sentir a mão inteira paralisada. Mas não o fazia sempre. Apenas nalgumas sextas-feiras. Se estivesse frio. E só se tivesse verniz roxo posto.
Também se apaixonava muito facilmente, mas apenas por personagens secundárias em filmes de luta. Normalmente filmes de ninjas. O ecrã entusiasmava-a mais do que simples carne e osso.
Nem notava toda a falsidade e maquilhagem que fluía das imagens.
Às vezes treinava cleptomania em restaurantes finos. Todos pequenos hábitos. Hábitos e argumentos que a acompanhavam.
Eram 11 e 36 e ela continuava numa aula. Mesas repetidas esvoaçavam no compartimento e as paredes começavam a avançar. Sentia-se feia. Feia na sombra. Tão feia que nem parecia ela.
Afundar-se em lições suga qualquer possibilidade de beleza. Pensava em idealizações arcaicas, murais e ruínas, algo que a espevitasse, que a levasse. Era a Polónia. Desde pequena que coleccionava tudo sobre a Polónia, se é que há muito a coleccionar sobre um país que passa tão despercebido. Música e postais, delícias e recordações. Era razoavelmente inconsciente esse desejo de hipnose livre, esse altruísmo desesperado por um país. Mas ela segurava-o.
Há sempre a tendência de acreditar nas nossas certezas. O que não temos, é sempre, absolutamente, totalmente melhor do que o que não temos. É a maldição de pensarmos.
E ela pensava. E ela sonhava. E na sua arrogante timidez acreditava.
Claro que acreditava.